O ICMS, a essencialidade da energia e o rei sumério
O prefácio brasileiro ao livro O Tributo ao Longo dos Tempos apresenta o autor holandês Ferdinand Grapperhaus como um dos maiores estudiosos da tributação em nível global. Além de consultor tributário, foi também secretário de Finanças da Holanda e professor de História da Tributação na Universidade de Leiden.
Ao narrar a história da tributação, Grapperhaus conta que em 2350 a. C, o rei Urakagina, na Suméria,
“anunciou um combate às injustiças as quais se deparou após sua ascensão ao trono do microestado de Lagash, tais como: tributação não autorizada, corrupção no templo e uso indevido da força pelos ricos. Essa são claras evidências de que havia iniquidades acometendo a população e, também, de que o soberano compreendeu ser seu papel lutar contra elas”.
Dito isso, sabe-se que nem sempre a tributação foi instituída como um sacrifício individual em prol do bem comum. No entanto, o soberano, ou o “Leviatã arrecadador”, nas palavras do professor Sacha Calmon Navarro Coelho, deve, assim como o rei Urakagina, observar o sofrimento de seus súditos.
O ICMS é um belo imposto. Embora muito atacado nos dias atuais, tem uma lógica conceitual que é republicana: visa desonerar a produção, é o principal tributo dos Estados federativos, e lhes garante a autonomia constitucional, partindo do pressuposto de que só tem autonomia quem paga as próprias contas. A instituição do ICMS na Constituição tem recém completos 34 anos, e sua regulamentação, que ocorreu via Lei Complementar 87, tem 26 aninhos apenas. Ainda assim, demorou esse tempo para que o Supremo Tribunal Federal, provocado pelos súditos e pelo soberano, declarasse que o ICMS incidente sobre a energia elétrica não pode ser do tamanho que os Estados quiserem. É preciso observar o peso disso na população nacional a partir da perspectiva de que energia elétrica não é prescindível, não é luxo, mas essencial. É o chamado princípio da essencialidade.
Diferentemente do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), da competência da União, o ICMS não é categoricamente seletivo e essencial. O legislador constituinte, ao tratar do ICMS, disse que sua alíquota “poderá ser” e por conta desse “poderá” brigamos 26 anos para que soubéssemos se a energia elétrica seria tributada com 27% ou com 17%.
Fatalmente os estados estão vendo sua arrecadação ruir, assim como as legislações que atribuíam alíquotas acima da modal, ou seja, a alíquota média. Após o julgamento do Tema 745 pelo Supremo Tribunal Federal, 12 legislações já foram declaradas inconstitucionais nesse ponto, as duas últimas foram de Roraima e Sergipe, em ADI proposta pelo procurador-geral da República, Augusto Aras.
Sabe-se que a tributação da comercialização de energia elétrica é uma das principais fontes de sustentação da arrecadação. Ocorre que um Estado empobrecido pode vir a deixar de cumprir suas obrigações essenciais, e quem mais demanda o braço estatal é a população mais pobre. Volta-se de novo a questões essenciais. A energia fica mais barata, mas o Estado pode ter que reduzir seus gastos; e em um exercício de ilação pode-se acreditar que o consumidor que comemorou a redução registrada na sua conta de energia devido à menor alíquota do ICMS fique sem atendimento ambulatorial por ausência de médico, pois houve cortes nos repasses à Saúde e o médico não poderá mais atender.
As possibilidades são inúmeras, inclusive a de que o empresário contribuinte de ICMS terá sua conta de energia reduzida e seu documento de arrecadação aumentado. A conclusão não é simples, e implica outra avaliação que afeta toda essa construção — a reforma administrativa. Afinal o soberano deve avaliar, como fez o rei sumério, quais iniquidades acometem a população. Esses são os pesos e contrapesos ao poder de tributar. A assistência estatal deve ser planejada de forma que sua manutenção não seja tão pesada que fira de morte os cidadãos.
Revista Consultor Jurídico, 26 de outubro de 2022, 16h08.
LIZ MARÍLIA VECCI
LLM em Direito Empresarial pela FGV/ESUP.
Graduada em Direito pela PUC-GO.
Atuação exclusiva em Direito Tributário desde 1996.
Conselheira Julgadora da Junta de Recursos Municipais de Goiânia (2000 e 2013).
Conselheira da OAB Seccional Goiás.